Pelo Centro de Vitória com Camila Benezath: praças, bares e tambores

O livro Praças, Bares e Tambores: Desvios de um Centro em Transformação, de Camila Benezath, é uma obra que transcende a simples análise urbana e se torna um manifesto sobre a cidade, suas ruas, sua arquitetura e, principalmente, sobre as pessoas que habitam e transformam este espaço. A autora, além de minha parceira de nipe, é uma arquiteta apaixonada pela rua e pela folia do carnaval, não tem como passar na Rua Sete e não encontrar com ela. Sua obra nos convida a olhar para o Centro de Vitória não apenas como um conjunto de construções e espaços vazios, mas como um organismo vivo, pulsante e em constante transformação! Nas primeiras páginas do livro você já quer colocar a cabeça para fora da janela e comparar o que vê na foto antiga do livro e o ao vivo. 

Em um formato dinâmico e cheio de nuances, Camila nos apresenta o personagem Raulzito, um alter ego inspirado no ícone da música brasileira Raul Seixas, que percorre as ruas do Centro da cidade. Raul-Zito, mais do que um simples caminhante, é a infância e suas muitas formas de devir narrador das transformações que ocorrem no bairro, um personagem que, por meio de suas andanças com sua turma ou mesmo sozinho, vai desvendando as mudanças na paisagem urbana e na própria relação cidadã com o espaço público. Para mim, o que ficou é que Raul-Zito simboliza a conexão entre o passado e o presente, o que foi, o que é, e o que pode ser o Centro de Vitória.

A Transformação das Praças e o Propósito de cada espaço

As praças, em sua essência, são lugares de encontro, mas também são espaços de disputa política e cultural. No livro, Camila explora como esses lugares passaram de simples pontos de descanso para territórios de resistência e transformação, espaços em que as tensões sociais e políticas se encontram e se manifestam de diferentes formas. A autora faz uma reflexão crítica sobre como os espaços públicos refletem os desejos do governo e as expectativas da sociedade, mostrando como a arquitetura das praças e das ruas é muitas vezes desenhada para atender a interesses específicos, muitas vezes afastando o povo de um uso pleno e democrático desses espaços.

As praças do Centro de Vitória, com suas características e histórias próprias, tornam-se personagens principais na narrativa. Elas não são apenas locais físicos, mas representações de uma luta contínua, de um processo de transformação, onde a arquitetura e o espaço público expressam o conflito entre a tradição e o novo, o povo a “elite capixaba”, e o desejo de reinvenção e pertença. Camila, por meio de Raul-Zito, nos desafia a questionar: quem de fato define o propósito desses espaços? E para/a quem eles realmente servem?

A Rua como lugar Político

A rua, ao longo da obra, é mais do que apenas um caminho por onde se passa; ela é um espaço político, um palco onde se expressam os desejos, as frustrações e as resistências da população. Como ecos da filosofia de Mikhail Bakhtin e seu círculo, saio da obra de Camila com o gosto de convite a refletir sobre o diálogo constante entre os cidadãos e a cidade, um diálogo que nunca é neutro e sempre carrega consigo uma multiplicidade de vozes e intenções. A cidade, através de suas ruas e praças, se comunica com seus habitantes, e eles, por sua vez, transformam e reconfiguram esses espaços com suas histórias, sua cultura e sua luta cotidiana. Depois do livro, nunca olhei da mesma maneira para o Centro de Vitória. 

Podemos observar que as ruas também amplificam a expressão do que nos falta: infraestrutura, segurança, igualdade. Mas, ao mesmo tempo, ela é um campo fértil para a criação de laços e a construção coletiva da felicidade. Camila destaca, especialmente, a importância dos blocos de carnaval, não apenas como um evento festivo, mas como um exemplo claro da resistência cultural e da construção de pertencimento. Os blocos são uma manifestação de como a cidade é capaz de criar formas de celebração e de resistência que vão além do momento festivo, se incorporando ao cotidiano dos habitantes, fazendo da rua um lugar de alegria, mas também de luta por direitos e visibilidade.

Mapas, Legendas e a didática de Camila Benezath

A cidade de Vitória, em constante transformação, nem sempre se revela de forma simples para os seus habitantes. Às vezes é difícil nos localizarmos, tanto fisicamente quanto simbolicamente, nas ruas e praças que, com o tempo, vão se modificando. Camila sabe disso e utiliza, com a utilização do traquejo arquitetônico, mapas e legendas como ferramentas pedagógicas que nos ajudam a entender as mudanças urbanísticas e a navegar pelas complexas relações entre espaço, tempo e identidade. Ao longo dos capítulos observamos que a cidade não é algo fixo, mas sim um organismo dinâmico, em constante transformação – e que, tal como nós, ela muda e se reinventa a cada dia.

Ao utilizar esses recursos gráficos dos mapas, legendas e fotografias, Camila nos ensina que, embora as transformações urbanas sejam muitas vezes difíceis de perceber e compreender, elas estão ali, à nossa frente, e temos o poder e a responsabilidade de nos posicionar nelas. A cidade não muda sozinha, e nós também não permanecemos os mesmos diante dela. A cidade e suas pessoas estão sempre em um diálogo contínuo, e é nesse processo de troca e adaptação que tanto a cidade quanto seus habitantes se constroem mutuamente.

A Luta Histórica e a resistência das Ruas do Centro

O Centro de Vitória, em sua complexidade, é um reflexo de um passado de luta contra a desigualdade e a exclusão social, e com o livro Camila Benezath nos faz enxergar como cada ladrilho, cada esquina, carrega consigo as marcas dessa batalha histórica. A transformação do espaço urbano não é apenas uma questão estética, mas sim uma forma de resistência à mesquinharia da elite capixaba, que muitas vezes tentou silenciar e marginalizar as vozes do povo.

Cada mudança nas ruas e praças do Centro de Vitória é uma pequena, propriamente dita vitória, sucessão de reconquistas da cidade pelo povo, e a arquitetura urbana se torna, nesse sentido, um reflexo dessa luta. Camila nos lembra, com precisão, que a cidade é um reflexo de nossas ações e escolhas, e que, ao modificá-la, estamos, na verdade, modificando a nós mesmos. Li o livro perto das mesmas semanas que desmataram as árvores das praças, tirando a fresca e sombra das árvores da Ubaldo. Fiquei pensando na continuidade da obra, com um Raul-Zito chamando a sua galera para protestar, chateados pelo sol quente que invadiu a quadra e trocou a sombra fresca dos espaços arborizados, pela política sombria das gestões públicas. 

Praças, Bares e Tambores é isso! Um livro feito por gente do bairro e que nos faz pensar sobre o papel da cidade em nossas vidas, sobre como o espaço público reflete as tensões sociais e políticas e sobre como podemos resistir e transformar nossa realidade. Um convite com visão crítica e ao mesmo tempo sensível e bem-humorada, que nos convida a caminhar pelo Centro de Vitória com novos olhos, a entender a cidade como um campo de luta e criação, onde cada ação, cada encontro, cada bloco de carnaval, é uma forma de resistência e reinvenção. Tal como a cidade, somos seres mutantes, que interagem com o espaço que construímos, dia após dia, a nossa própria felicidade no centro de nossas vidas! 

Para comprar o livro acesse o site da Editora Cousa.

Autora:

Kallyne Kafuri Alves
Doutora em Educação e Professora da Educação Superior.
Observa, analisa e reflete sobre o mundo, a educação e a humanidade com atenção às artes e formação de pessoas.