02/07/2021 - Autor: Flávio Trevezani e Cledson Wagner Souto
Diferente da data internacional celebrada em 21 de março, o Dia Nacional Contra a Discriminação Racial é comemorado em 3 de julho. Porque neste dia em 1951, há 70 anos, o Congresso Nacional aprovou a primeira lei contra o racismo no Brasil, estabelecendo como contravenção penal qualquer prática de preconceito por cor ou raça. Desde então, muitas outras propostas vieram para combater a desigualdade racial no país.
Discriminação racial e racismo não são a mesma coisa, como muitos podem achar. Para explorar esse assunto, precisamos entender do que se tratam na íntegra. Enquanto discriminação é nome que se dá à conduta (seja ação ou omissão) que viola direitos das pessoas com base em critérios injustificados e injustos, tais como: raça, sexo, idade e origem. Discriminar significa segregar. No caso da discriminação racial, significa distinguir alguém com o propósito de isolar, tratando-a diferente e de forma parcial motivado pela diferença racial.
Já o racismo, segundo a definição do dicionário da língua portuguesa Priberam, pode significar:
Nesse caso, é o crime cometido com tal conduta discriminatória relativa à raça ou cor, que hoje, pela Lei Nº 7.716, é crime inafiançável e imprescritível. Há também o crime de injúria racial, previsto no parágrafo 3º do Artigo 140 do Código Penal. O que difere ambos é que o racismo é acometido contra a raça, enquanto a injúria é tratada como uma ofensa direta ao indivíduo.
Como forma de ilustrar, segue duas abordagens de exemplo condenatórios onde configura-se injúria racial e racismo:
É importante lembrar que discriminação racial não se resume ou se aplica somente a pessoas negras de origem afrodescendente, mas sim a qualquer forma de discriminação embasada em aspectos fenótipos associativos à raça, como cor, cabelos ou olhos. Indígenas, árabes, judeus, curdos, orientais, latinos, negros são alguns dos grupos raciais que ainda sofrem forte discriminação oriundas de sua cor ou raça. No Brasil, o perfil racial que mais sofre preconceito e discriminação é o negro.
Não é preciso ser doutor em história ou antropologia para entender, mesmo que apenas um pouco, porque pessoas de pele clara sofrem menos preconceito do que aquelas que têm mais melanina. Existe uma longa trajetória histórica que culminou na atual conjuntura social discriminatória em relação à raça. Historicamente, os povos que se tornaram conquistadores foram os europeus, que são brancos. Por causa da sua vantagem técnica, política, científica e armamentista puderam invadir territórios, conquistar riquezas, massacrar povos e explorar mão-de-obra barata, que no caso do Brasil, foi escrava. Por isso, os povos subjugados foram considerados inferiores, e por consequência, também os indivíduos e a raça dos lugares conquistados.
Para entender porque os “brancos” dominaram a sociedade ocidental globalizada, vamos dar uma rápida passeada na história. Com o avanço da engenharia naval, as fronteiras marítimas passaram a ser superadas. Abriu-se caminho para a exploração de novas rotas mercantes pelo mar, por volta do século XV. Isso possibilitou àqueles que dominavam a navegação a se sobressair na conquista de novas terras e na exploração da riqueza alheia.
Em relação ao histórico da discriminação no Brasil, sabe-se que foram os indígenas os primeiros a serem escravizados, mas devido a um conjunto de fatores, essa mão-de-obra foi gradualmente substituída pela africana, entre os séculos XVII e XVIII. Fatores como: cultura, falta de costume a rotinas exaustivas de trabalho, pois trabalhavam apenas para subsistência, fugas e fatores biológicos, que promoveram o afastamento ou fizeram o número de indígenas cair drasticamente. Milhões de africanos foram trazidos como escravos para a América Portuguesa, e após séculos de exploração, a escravatura foi abolida em 1888. O número de africanos e afrodescendentes libertos na abolição em solo brasileiro é estimado em 700 mil, segundo historiadores.
E como ficou a vida dos ex-escravos após a abolição, sem terras, educação formal, direitos ou fonte de renda? O tratamento dado aos afrodescendentes e indígenas ao longo da história colonial, imperial e republicana do Brasil nunca permitiu que estes dois grupos participassem do protagonismo da sociedade brasileira, deixando-os à margem (marginalizando-os), maculando sua imagem e impedindo seu desenvolvimento.
Imagine uma ampla população sem direitos, posses, terras e oportunidades? Agora imagine o que era preciso fazer para sobreviver? Isso era a realidade dos povos marginalizados, que precisavam se estruturar, desenvolver atividades, se sustentar e se encaixar na sociedade. Como não tinham para onde ir, ocuparam desordenadamente regiões que formaram as primeiras periferias e favelas. Terras improdutivas e sem interesse para elite, onde era permitido que ex-escravos se alojassem.
Assim, pertencer “à margem” era intrinsecamente associado à inferioridade, pobreza e miséria. Que por sua vez, está relacionada diretamente à população não branca. Começa aí estruturação da discriminação e segregação racial no Brasil. Por isso, ser marginal (hoje, ser periférico, suburbano ou da comunidade), que é aquele que vive à margem da sociedade, passou a ser sinônimo de criminoso. Estigma que atinge a maior parte da população não branca do país.
Essa dívida histórica e essa realidade tenebrosa geraram nos indivíduos e nas comunidades formadas por eles um sentimento de revolta. Surgiu a necessidade de se expressar e apresentar para mundo a triste realidade que existia em lugares que nunca foram sequer visitados pela elite.
A reação a essa realidade motivou negros e demais não brancos a resgatarem, evoluírem e disseminarem sua arte e cultura. A socialização distante da influência direta e imposta pela sociedade branca, deu a oportunidade de recuperar parcialmente a cultura ancestral sem disfarces. Como por exemplo, o que ocorreu com as religiões de origem africana, nas quais figuras do Candomblé tiveram de ser associadas a figuras religiosas cristãs, como santos católicos, para que sua crença não morresse e pudesse ser cultuada às escondidas.
Rap, Funk, Samba, B&M, Hip-hop, Blues, Jazz, entre outros estilos musicais e outras formas de arte, nasceram da liberdade cultural e da revolta daqueles que vivem à margem da sociedade como forma de expressão. A busca por dar voz a movimentos em prol de direitos e contra a opressão, perseguição, discriminação, preconceito e morte, inspiraram a arte, que alcançou proporções marcantes e ainda continua fazendo história. A arte sempre teve poder de romper barreiras, dar voz e forma a desejos e necessidades, que nesses casos, podem ser inspirados por gritos de revolta e brados por direitos ou da alegria e o swing cultural de um povo artístico e alegre.
Mas, mesmo havendo um lado de enriquecimento da cultura mundial e principalmente nacional, ainda é muito recente o discurso de representatividade nas mídias e veículos de comunicação. A arte possibilitou, e tem possibilitado, o enaltecimento cultural e histórico de diversos povos, raças, etnias e personalidades apagadas pelo embranquecimento cultural. Em meio a esse movimento, diversos estilos e movimentos culturais nasceram, como forma de marcar, diferenciar-se, destacar-se e ser autêntico perante a cultura do embranquecimento.
Música A Carne – Elza Soares
Só que essa mesma arte é usada, inúmeras vezes, para embasar estereótipos racistas e discriminatórios, como o caso da mulher negra que precisa saber sambar instintivamente ou do homem negro que é associado à figura de criminoso. Isso é uma das muitas formas de racismo estrutural que está entranhado no subconsciente social e precisa ser exterminado.
Preconceito estrutural se trata de um conjunto de práticas, hábitos, situações e falas embutidos em nossos costumes e que promove, direta ou indiretamente, a segregação ou o preconceito racial. A imagem criada sobre um indivíduo antes mesmo de você o conhecer, baseado na sua cor ou etnia é um forte exemplo disso. Se você já mudou de calçada na rua ao ver um ou mais jovens negros, trajados como culturalmente os jovens da sua região se vestem, por acreditar que poderiam se tratar de bandidos, você agiu, instintivamente, baseado no preconceito racial estrutural.
Se por acaso, pensou em justificar dizendo que não foi por causa da cor da pele, mas por se vestirem feito “marginais”, saiba que o estilo e trajes que se refere, são populares nas periferias e comunidades, por consequência, os marginais de fato e criminosos, que podem provir da mesma região e cultura, se vestem da mesma forma. Nesse contexto, se você avistasse uma pessoa vestida de trajes típicos gaúchos, “country” ou “sertanejos” teria medo dela? Exatamente! A vestimenta, mesmo em um jovem de pele clara, mas que remete a cultura suburbana ou de comunidade, que é a região onde os povos de etnias não brancas conseguiram se fixar e se desenvolver como sociedade, é associada automaticamente ao medo e à criminalidade.
Se a “cara” da criminalidade é periférica e se a cor associada é escura, a culpa disso foi o fato de não ter havido planejamento, amparo e condicionamento adequado a esses povos arrancados de suas terras, explorados, acuados, abandonados e marginalizados. Isso se chama dívida histórica e é por isso que as cotas se fazem necessárias, junto a outras formas de reparação.
Não é apenas nos países com passado escravagista, que a presença de melanina proporciona ao indivíduo menos oportunidades e maiores chances de sofrer preconceito. Na cultura indiana, por exemplo, pessoas com tons mais escuros são menos visadas que pessoas com a pele mais clara. Foi difundido na sociedade indiana, que tem uma cultura muito enraizada em castas, que a pele clara está associada diretamente a castas mais altas e pessoas bem sucedidas, enquanto a pele escura a castas mais baixas.
Isso é um exemplo do colorismo. O colorismo é um termo que mede a intensidade da cor da pele em tonalidades e as associa positiva (clara) ou negativamente (escura). A pele negra pode variar em diversas tonalidades, mas o colorismo entra nesse aspecto como um triste termômetro para o racismo. Uma pessoa de pele negra, porém mais clara, teria, tecnicamente nessa abordagem do colorismo, mais vantagens ou, no caso, sofreria menos preconceito que uma pessoa mais escura. Ela ainda sofre com a discriminação racial e possibilidade de racismo, mas possivelmente de forma menor ou mais amena que a de pele mais escura.
A quem debata essa abordagem de diversas formas, mas muito provavelmente, já deve ter ouvido, presenciado ou até mesmo dito ou pensado algo do tipo: “É morena, sabe? Tipo negra, mas com a pele mais clara / dourada / parda”. Essa abordagem leva o indivíduo a se distanciar de sua raça, onde ser mais claro é melhor. Como se ser branco fosse atestado de superioridade.
A disseminação intrínseca cultural referente à cor da pele é como uma régua de cor, muito bem ilustrada e ironizada em um episódio da série da Fox: Guy Family, ou traduzido para o português, Família da pesada. Onde quanto mais clara, melhor, ou seja, quanto escura a cor da pele, mais certeira a associação do indivíduo como culpado, criminoso, perigoso e não confiável.
Para qualquer negro ou indígena que tenha o mínimo de compreensão histórica, falar de miscigenação não soa como algo positivo. A história nos levou a acreditar que isso só pode ser resultado de abuso, embranquecimento das raças e assassinato cultural. Sim, de fato nosso passado é manchado de fatos tristes e tenebrosos. Mas hoje, como consequência, o que faz do Brasil essa nação rica culturalmente e de beleza tão admirada e difundida é exatamente a mistura das raças, povos, culturas e histórias. Seria maravilhoso se isso tivesse ocorrido baseado na liberdade e no amor, que deveria ser adotado como regra de hoje em diante.
Nós da Porankatu, acreditamos fortemente na beleza da diferença e na riqueza da diversidade. Somos contra qualquer forma de discriminação e queremos exterminar todas as formas possíveis de preconceito racial da face da Terra. Se você também acredita que podemos construir um mundo melhor e mais inclusivo, espero que possa contar conosco nessa empreitada. Chega de discriminação racial e viva à diferença!