03/08/2021 - Autor: Flávio Trevezani
Esporte legitimamente brasileiro, a capoeira é uma luta ritmada que por um bom tempo foi dada como dança. Essa imagem de dança foi criada aparentemente pelos próprios inventores da luta, para poderem conseguir praticá-la. Isso, uma vez que quem a desenvolveu foi o povo africano escravizado em solo brasileiro. Havia uma razão plausível para essa mistura de luta e dança: escravo não podia praticar luta, já a dança não tinha problema.
É preciso deixar claro que a cultura africana tem por base histórica, e importância, grande uso de música e toque de percussão em diversas situações de seu cotidiano como em rituais religiosos, comemorações, festividades, preparativo para guerras e também para as lutas. Logo, misturar batuque com luta não seria uma coisa tão incomum assim para esses povos e seus descendentes.
Com batidas típicas africanas, a capoeira possui movimentos que podem ser realizados de forma mais lenta ou mais rápida, de acordo com o estilo da capoeira que dita o ritmo e a música. Onde a velocidade de como é praticada também muda, uma vez que capoeira não se resume em um só tipo, podendo variar.
Patrimônio cultural da humanidade e motivo de orgulho para o povo brasileiro, a capoeira é sinônimo de Brasil, negritude, suingue, resistência, gingado, destreza, habilidade e tradição. E já foi exportada para todo o mundo.
Num país onde a cultura negra e indígena não é tão valorizada quanto às culturas europeias, a capoeira com certeza se destaca de forma positiva e sem distorção estereotipada, como acontece com o samba e o carnaval que acabaram sendo sexualizados em alguns aspectos. Mas infelizmente, mesmo sendo um orgulho nacional, ela é um orgulho muito menor do que poderia e deveria ser e ter de fato.
Sua origem possui duas vertentes principais segundo estudos e historiadores. É certo que a capoeira tem inspiração nas lutas e danças típicas praticadas na África, trazidas junto com os povos africanos escravizados pelos portugueses. Mas acredita-se que a capoeira em si, tomou forma aqui, em solos tupiniquins. Algumas vertentes de estudos e pesquisas acreditam que a luta se desenvolveu nos terreiros anexos às senzalas. Mas praticar uma arte de luta sendo escravo era um tanto quanto complicado. Por isso, era preciso ser disfarçada de dança para não ser proibida, uma vez que as práticas de luta eram proibidas pelos escravizadores de ser praticada pelos negros. Claro que essa medida preventiva de proibir a prática de lutas era baseada no medo de rebelião e violência contra os escravizadores.
Essa vertente de nascimento nas senzalas ainda baseia-se que a prática da luta dançada era usada como forma de desestressar e entreter aqueles que possuíam rotinas muito intensas como os negros escravizados. Ver e participar de momentos de interação como a capoeira trazia um pouco de alegria e autoestima para quem não tinha nada.
Outra vertente acredita que a arte dessa luta tenha sido desenvolvida nos quilombos, como forma de defesa dos negros que conseguiam fugir e precisavam condicionar-se bem em caso de confronto, que já era bem desvantajoso: armas brancas como facas, lanças e bastões rústicos contra espingardas e revólveres.
Tenha sido na senzala ou no quilombo, sabemos que foi um povo sofrido e muito guerreiro que desenvolveu essa arte, que seja ela dança lutada ou luta dançada, é bonita de se ver e de praticar.
Se você nunca ouviu o baque de uma roda de capoeira, devolva sua carteira de “brasileiro com orgulho”. Regida por uma bateria musical, é o berimbau o instrumento que rege essa batida. Instrumento de percussão feito de um arco de biriba (madeira típica para produção do instrumento) envergado por um arame, possui uma cabaça anexa na parte próxima a base e acompanha o dobrão (pedra ou pedaço de metal) e a baqueta.
Instrumento fundamental usado na capoeira, o berimbau pode ser usado em outros lugares ou ritmos, como em músicas de axé ou até de samba. Mas onde ele é característico e fundamental mesmo é na capoeira.
O vídeo mostra Carlinhos Brown cantando Meia-lua inteira ao som do Berimbau, tocado por ele mesmo.
A roda de capoeira é ambientada com ritmo dos instrumentos típicos, que além do berimbau, possui pandeiros e atabaques. Tradicionalmente são três berimbaus, dois pandeiros e um atabaque, mas também pode haver nessa bateria o agogô e o ganzuá, e as quantidades de cada instrumento podem variar.
Não é apenas as batidas do toque dos instrumentos que ditam o ritmo da capoeira, ela também possui uma característica marcante que são as palmas, batidas no ritmo da música. Um dos desafios mais gostosos de quem assiste uma roda de capoeira é com certeza tentar bater no ritmo da música, igual aos capoeiristas fazem enquanto assistem dois jogadores jogarem.
Mas junto a todo esse toque, baque e palmas, tem o canto. A música é cantada por um solista e respondida pelo coro, que é composto pelo resto dos capoeiristas e instrumentistas. Mesmo tendo refrãos típicos como “Zum zum zum, capoeira mata um”, existe muito mais sobre o canto da capoeira que apenas cantigas rimadas. Esse canto pode ser dividido e classificado em quatro tipos e partes:
A riqueza dos detalhes do ritmo e movimentos dessa luta é tanta, que começa a ser compreensível o porquê dela se confundir com uma dança.
Mas saiba que no passado, décadas após a abolição da escravidão, a capoeira foi proibida de ser jogada, em 1890. Ela foi considerada uma arte violenta e perigosa. Saiba que poucos são os que já viram uma real luta de capoeira, muito diferente do jogo de capoeira que estamos acostumados. Acredite, uma luta de capoeira na íntegra faz um estrago tão grande quanto qualquer arte marcial oriental, se não maior.
Foi por volta de 1940, quando o célebre mestre Bimba, Manoel dos Reis Machado, apresentou ao presidente Getúlio Vargas a Capoeira, que encantou Getúlio, óbvio. E foi após o evento que a capoeira deixou de ser criminalizada. A Partir de então, a proibição foi derrubada e sua prática liberada para a população.
Se você já viu capoeira cantada e jogada lentamente, provavelmente viu uma roda de capoeira Angola, a mais tradicional. Mas se viu uma roda de capoeira ritmada e rápida, essa deve ter sido uma roda de capoeira regional, criada por Mestre Bimba. Mas calma, se você já assistiu uma apresentação maior e viu ambos os estilos, essa é a terceira vertente e é a mais popular: a capoeira contemporânea. Esse estilo é hoje o mais praticado e mistura os dois outros estilos.
A luta se popularizou após a liberação da prática de capoeira, e de luta ela passou a ser praticada como jogo. Assim, jogar capoeira ou participar de uma roda de capoeira tornou-se uma prática física popular. Tratada desta forma, a prática da arte deixou de ser lutada, com golpes deferidos de fato e passou a ser uma luta simulada, onde os movimentos são apenas encenados, sem a finalização do golpe. A disputa deixou de ser derrubar à força o oponente e passou a derrubá-lo em rasteiras, sem intenção de machucar. A beleza está em ver os golpes simulados e imaginar que se de fato, fossem deferidos, meu amigo, algumas pessoinhas iam ser nocauteadas.
Se já ouviu a palavra ginga, eis que o movimento principal da capoeira, de jogar de um lado para o outro ao ritmo da música enquanto espera o outro jogador preparar o golpe ou a se desvencilhar dele, se chama exatamente ginga. Nasceu aí a ginga e talvez é daí também a imagem de que o povo negro tem tanta ginga assim, afinal, são os inventores dela.
O Vídeo acima é um resumo muito bem contado da história da capoeira em 3 min. Vale a pena assistir.
A história, a arte, a riqueza cultural, origem e o fato de ser uma prática física/esportiva já tornam a capoeira algo fantástico por si só, mas existe algo nela que é ainda mais curioso e divertido: o apelido.
A capoeira possui cordas, como as faixas dos esportes marciais orientais. Os praticantes graduam de acordo com sua evolução na prática da capoeira. E a graduação, assim como nos outros esportes marciais, ocorre em uma cerimônia. São nessas cerimônias de graduação que novos alunos são batizados.
E para ganhar um apelido na capoeira não é só chegar e ir se dando ou recebendo na primeira jogada não. O apelido ou nome de capoeira é recebido pelo aluno na hora do batizado, geralmente pelo seu mestre.
No universo da capoeira, os capoeiristas passam a ser conhecidos mais pelo seu apelido que pelo nome próprio e esse apelido pode ter origem e ser inspirado em diversos fatores, que vão desde características físicas, até alguma habilidade ou gosto peculiar do jogador.
Segundo análises históricas, a origem do apelido vem do período de proibição da prática de capoeira, dessa forma, tratar-se por apelidos evitava expor o capoeirista caso houvesse denúncia ou batida policial. Achar o “besouro” ou o “pé-de-pedra”, era bem mais difícil que achar alguém com nome e sobrenome.
Desde de entreter o grupo que habitava a senzala até preparar os guerreiros do quilombo, a capoeira não é uma luta de dois a dois apenas. Se observar, sempre acontece em rodas com vários e todos tendem a participar. Apesar do jogo acontecer entre dois jogadores por vez, a roda é plural. A capoeira tem esse papel de integrar e socializar desde seus primórdios e com o passar do tempo, essa ação só se potencializou.
Não tem como um esporte com uma origem tão rica e intensa como esse não se tornar referência na luta social. Hoje, diversos grupos de capoeira, assim como instituições usam do esporte como forma de agregar socialmente jovens, crianças e adultos, dar apoio e socializar de forma positiva.
Poderíamos citar alguns grupos (que podem ser vistos aqui no link), ONGs e instituições que usam da capoeira como ferramenta de integração social, mas praticamente todos os grupos de capoeira têm o papel de integrar e realizar ações sociais, sejam apresentações para população ou ações de arrecadação de alimentos para instituições e menos favorecidos, assim como é em vários outros esportes. O esporte tem esse papel de atrair, conscientizar e contribuir socialmente.
Se você nunca viu, jogou ou ouviu o baque de uma roda de capoeira, já passou da hora de agraciar essa arte legitimamente brasileira. Bora elevar essa arte esportiva que é nossa e é nascida com base em muita raça e sangue. Parabéns a todos grupos, mestres e capoeiristas do Brasil e do mundo.